Do questionário da Capricho ao TikTok: o perigoso jogo do autodiagnóstico nas redes sociais


Nos anos 90, era comum ver adolescentes com uma edição da Revista Capricho nas mãos, preenchendo questionários que prometiam revelar traços de personalidade, signos compatíveis ou mesmo prever o futuro amoroso. Era tudo muito divertido e, no fundo, inofensivo. Esses testes cumpriam um papel simbólico importante: ajudavam a lidar com dúvidas típicas da adolescência e a buscar sentido sobre si mesmas e o mundo ao redor. Hoje, a lógica parece a mesma, mas com outra roupagem — e consequências muito mais sérias. Os questionários de revista deram lugar aos vídeos no TikTok e aos posts virais no Instagram, enquanto os temas giram em torno de transtornos mentais. A diferença é que, agora, muitas pessoas estão usando essas postagens como base para se autodiagnosticar, criando um cenário preocupante para a saúde mental.

Na prática clínica, tenho recebido cada vez mais pacientes que já chegam ao consultório com um suposto diagnóstico em mãos. “Eu tenho TDAH”, “Tenho certeza que sou borderline”, “Estou com ansiedade generalizada” — são afirmações ditas com convicção, mas quase sempre baseadas em conteúdos das redes sociais. Quando pergunto como chegaram a essa conclusão, as respostas geralmente envolvem vídeos de influenciadores, listas de sintomas compartilhadas no Instagram ou relatos em fóruns e grupos virtuais. O mais alarmante é que, em muitos casos, essas pessoas já trazem também sugestões de medicamentos: “Ouvi dizer que tal remédio é ótimo, acho que preciso tomar”.

É fundamental reconhecer que esse movimento parte de algo legítimo: a tentativa de nomear um sofrimento, de encontrar explicações para um mal-estar persistente. Há uma demanda real por compreensão e acolhimento. Por outro lado, essa busca por respostas rápidas e encaixes prontos contribui para uma crescente banalização dos transtornos mentais e uma falsa sensação de autoconhecimento. Um vídeo curto que enumera sintomas genéricos pode gerar identificação momentânea, mas não substitui — em hipótese alguma — a escuta clínica qualificada. O sofrimento psíquico é multifacetado, complexo e não se reduz a uma lista de comportamentos ou sensações.

A tendência ao autodiagnóstico, quando associada à automedicação, torna-se ainda mais perigosa. Já atendi pessoas que, antes mesmo de qualquer avaliação profissional, decidiram usar medicamentos indicados por amigos ou baseados em depoimentos de desconhecidos nas redes. Em alguns casos, utilizaram sobras de remédios de familiares, convencidas de que aquilo resolveria seus problemas. Além do risco evidente à saúde física, há também o risco de mascarar sintomas que poderiam indicar um transtorno mais grave — ou, por outro lado, de tratar medicamente algo que poderia ser resolvido com acompanhamento psicológico, escuta e elaboração.

Essa realidade está diretamente ligada à lógica do funcionamento das redes sociais. Os algoritmos são projetados para reforçar interesses: se você assiste a um vídeo sobre ansiedade, logo será bombardeado com conteúdos sobre depressão, TDAH, transtornos de personalidade, e assim por diante. Em pouco tempo, o usuário passa a viver em uma bolha de patologização do cotidiano, onde qualquer oscilação emocional ou comportamento fora do “normal” vira indício de algum transtorno. O mal-estar humano, que é parte da experiência de viver, começa a ser lido exclusivamente como sintoma de doença.

É urgente refletirmos sobre os impactos dessa tendência. Falar sobre saúde mental nas redes sociais é importante, sim. Nunca se falou tanto sobre ansiedade, burnout, depressão — e isso é positivo, pois quebra tabus e incentiva a busca por ajuda. No entanto, quando esse discurso se afasta da responsabilidade e da técnica, abre espaço para desinformação, diagnósticos equivocados e tratamentos inadequados. A saúde mental exige tempo, cuidado e escuta especializada. O espaço terapêutico é o oposto da lógica acelerada das redes: ele é um lugar de pausa, de elaboração e de construção conjunta de sentido.

Não se trata de desacreditar quem sente dor psíquica ou quem busca respostas. Mas é preciso diferenciar identificação de diagnóstico. Reconhecer-se em um post pode ser o primeiro passo para buscar ajuda — não o último. E, definitivamente, não é função das redes sociais determinar o que você tem ou não tem. Como psicóloga, tenho acompanhado de perto os efeitos dessa cultura do autodiagnóstico e percebo como ela muitas vezes atrasa o início de um tratamento adequado, gera frustração e até culpa quando o “diagnóstico da internet” não corresponde à realidade clínica.

Assim como os testes da Capricho não diziam, de fato, quem éramos, os vídeos no TikTok também não dizem. A diferença é que, antes, o jogo era lúdico. Hoje, ele envolve saúde, sofrimento e riscos concretos. Precisamos lembrar que sofrimento psíquico não se resolve com diagnósticos apressados nem com promessas simplistas. É necessário tempo, escuta e, principalmente, responsabilidade.

Por Adriana Meneses dos Santos — Psicóloga (CRP 19/4184), Jornalista e Pesquisadora

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