Ele me chamava de “mamãe”, embora tivesse 32 anos a mais que eu. Ele dizia que era por causa do meu jeito, muito maternal.
Já ele me lembrava meu avô. Não fisicamente, nem tampouco no jeito de ser, mas sim, nas muitas vezes em que subi ao refeitório para almoçar com ele. Era naquele ambiente simples dele que eu reencontrava meu avô.
No papagaio que nos esperava na subida da longa escada, na mobília antiga, nas travessas em que eram servidas as comidas, na beterraba da salada e, principalmente, no guardanapo que ele amarrava no pescoço para não sujar a camisa, sempre impecavelmente branca e bem engomada.
Ali ele se despia da autoridade e se deixava ser como gostava. Ali, a conversa corria frouxa. Ele relembrava fatos de sua infância, repetia as frases cheias de sabedoria de sua avó (que eu já sabia de cor) e, entre uma garfada e outra, insistia para que eu comesse mais um pouco.
Mas tudo isso acontecia em meio a um entra e sai frenético de funcionários do colégio, que aproveitavam aquele horário para “despachar” com ele de maneira mais rápida.
Nunca o vi repelindo ninguém, nem pedindo pra voltar depois. Ele sempre atendia a todos, mesmo tendo que sacrificar alguns momentos do seu precioso horário de almoço.
O refeitório era, na verdade, a extensão do seu gabinete, ou, melhor dizendo, o “atalho”. Se a gente quisesse lhe pedir autorização para alguma coisa mais urgente, ali era, sem dúvida, o melhor lugar.
Já saíamos dali com meio caminho andado e de barriga cheia, ainda por cima…
Mas nós nos conhecemos muitos anos antes. Entrei como aluna do 1 ano ginasial em 1969, com apenas 10 anos de idade. Quando o colégio era pequeno ainda, habitado também por seminaristas que moravam no segundo andar.
Entrei quando a farda ainda era saia plissada cinza, blusa branca e sapato preto Vulcabrás…
Quando o speedball do pátio das mangueiras era nosso maior sonho de consumo…
Quando Morena comandava a cantina e a doce e silenciosa Irmã Augusta enfeitava as capas dos nossos trabalhos com sua bela letra…
Vi a farda se transformar em calça jeans e tênis, vi o sino se transformar em música nos intervalos e as aulas de inglês se tornarem mais modernas com recursos de audiovisual.
Mas quando chegou o dia de ir embora, nem olhei pra trás. Saí como se o mundo fosse meu, aos 17 anos, achando que nunca mais voltaria ali.
Mas voltei. Vinte anos depois, formada, casada e com cinco filhos, todos crianças.
Voltei a convite dele. Queria que eu fosse professora de português e Literatura do Ensino Médio e, nas horas vagas, uma “espécie de mãe para os alunos”.
Aceitei na hora.
Meu velho colégio agora tinha se transformado numa pequena “cidade”, de 4300 alunos, que tinha piscina, quadra, auditório, capela, marcenaria, livraria e tantas coisas mais.
Mas a aluna que tanto queria ser professora nunca deixou de ser aluna.
Um pedaço meu havia ficado ali, naqueles antigos corredores de azulejos verde e amarelo, naquela enorme escada vermelha que tantas vezes me viu chorando as mágoas do primeiro amor.
E foi com esse mesmo amor de aluna que fiz gerar em mim a professora que eu sempre quis ser. Entusiasmada pelo meu trabalho, apaixonada pelos meus milhares de alunos e sempre atenta às necessidades do meu querido colégio.
Não fui apenas professora. Fui mãe também, como ele havia me pedido pra ser. Mãe de alunos, mãe de pais de alunos, mãe de professores e até de alguns funcionários que, vez ou outra, me pediam ajuda. Vezes sem conta, subi ao refeitório para interceder pessoalmente por algum deles…
Tudo fiz para retribuir aquele singelo convite que mudaria a minha vida para sempre.
Fiz do Arqui a extensão da minha casa. Fui professora, orientadora, redatora de jornal, produtora de peças de teatro, diretora da associação de ex-alunos, criadora do Memorial do Arqui. Durante 20 anos esqueci de mim mesma para viver o Arqui.
Mas tudo passa, nada dura para sempre.
Hoje se foi meu velho Padre Carvalho, o último vínculo que me prendia ao Arqui.
Mas vai o homem, fica a história.
Mas eu não fui ali me despedir do fundador e diretor de um dos maiores colégios do estado, do homem que fez história na educação de Sergipe e que formou centenas de milhares de “cidadãos capazes, dignos e verdadeiros discípulos de Cristo”.
Fui ali me despedir do homem simples do refeitório, que chupava laranja depois do almoço e que me lembrava meu avô.
E que vai me encher de saudade, sempre que eu encontrar alguém almoçando com um guardanapo amarrado ao pescoço…
Com a gratidão e o carinho da sua “mamãe”, Lilian Rocha (27.05.25)
Uma resposta
Excelente texto e nossos sentimentos.