As três principais bacias hidrográficas do Brasil são: Amazônica, Platina e do São Francisco.
Viu só? Estou entre as três principais, porém com uma diferença, minha bacia é exclusivamente brasileira, resido totalmente dentro do Brasil. Nem “Eu”(Rio São Francisco), nem meus afluentes e subafluentes, viemos de outros países ou saímos do Brasil e, isso é motivo de grande orgulho para mim, ser totalmente brasileiro.
Vou lhes contar um pouco sobre minha história:
O “berço” onde nasci, foi o estado de Minas Gerais, na Serra da Canastra, área de clima tropical, com chuvas torrenciais que desabam no Verão sobre minhas cabeceiras, formando um conjunto de cachoeiras. A paisagem do meu “berço” é linda. Local onde a Natureza forma um complexo maravilhoso, onde se misturam: quedas d’ águas, muita vegetação, animais e aves nativas. Graças a Deus, o local é preservado, pela lei que criou o “Parque Nacional da Serra da Canastra”. Se assim não fosse jamais meu berço seria como é: digno de cartão postal, cenas cinematográficas, voltado para o turismo e algumas atividades regionais em suas cercanias.
Juventude – Durante minha juventude, como qualquer outro jovem humano, eu estava repleto de entusiasmo, ousadia, e coragem, foi aí, que resolvi atravessar o “Sertão”. Área mais seca do país , com clima semiárido, chuvas escassas, solo duro e pedregoso, coberto por uma vegetação , rala e pobre(caatinga), com aves assustadoras que plainavam sobre meu leito, como o Carcará. Meu grande temor era não conseguir chegar até o fim, da minha jornada, e secar em meio caminho. Porém, com muita valentia e destemido, atravessei a Depressão Sertaneja, passando vários estados e não sequei. Quando estava chegando próximo ao meu destino, passei, por maravilhosos “paredões” (canyons)”,entre, SE e AL, é só aí, consegui enxergar o Atlântico, onde depositei minhas águas através de um abraço fraternal. e poder finalmente gritar : “Eu, Venci o ertão”.
Por onde passei, não só levei água (fonte de vida) mas também proporcionei uma vida melhor aos ribeirinhos, o progresso e o desenvolvimento a áreas tão inóspitas.
Na minha fase adulta , possibilitei a constrição da maior represa no coração do sertão, Sobradinho, entre as cidades de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE). Quando chove a represa mais parece um “mar”. Sobradinho, passou a ter diversas utilidades, como hidroelétrica, eclusas, projetos de irrigação para cultivos de subsistência e para exportação (fruticultura irrigada). Lembro-me que no início da construção, a obra exigiu a inundação de várias cidades como: Remanso, Santo Sé, Pilão Arcado e Casa Nova, que hoje se encontram abaixo do meu espelho d’ água. O fato foi tão inusitado, que inspirou muitos autores a criarem: músicas, canções, versos, literatura de cordel etc…, em função de sua exuberância e utilidade . Meus afluentes, no sertão, são intermitentes (temporários). Na época da estiagem, seus leitos, são utilizados pela agricultura de “Vazante” (temporária). Ah! Já ia me esquecendo, ao longo de minha vida, recebi vários “codinomes” (apelidos) como: Rio dos Currais, Rio Nilo Brasileiro, Rio da Unidade Nacional e até Velho Chico. Qual a razão desses apelidos? Vou explicar um por um.
RIO DOS CURRAIS – Esse nome surgiu na época do Brasil colônia, até então , o gado bovino era utilizado na Zona da Mata, apenas para o plantio da cana, produção do açúcar e transporte; porém o rebanho aumentou, invadiu os canaviais para se alimentar e com isso a boiada foi
expulsa do litoral e embrenhou-se no sertão, próximo das minhas margens. Esse fato deu origem a primeira atividade exclusivamente pecuarista, tornando o sertão, local, onde se desenvolveu o 1º ciclo do gado no Brasil.
RIO NILO BRASILEIRO – Segundo estudiosos, “EU” (Rio São Francisco), sou irmão gêmeo, do Rio Nilo da África, ou seja, somos semelhantes. Confira você mesmo: O Nilo atravessa área árida sem secar, “EU” também. O Nilo é utilizado para agricultura de irrigação, geração de energia elétrica, navegação por eclusas, e, “EU” também. A História nos diz: “O Egito é a dadiva do Nilo, e, “EU”, digo: O São Francisco, é a dadiva do Sertão nordestino.
RIO DA UNIDADE NACIONAL – Esse nome foi me dado, na época do Brasil Império, quando perceberam que meu curso d’ água, unia o nordeste ao sudeste, a partir de então vários projetos surgiram para interligação fluvial das duas regiões, desde a BA e PE, até, Pirapora em MG. O projeto pós concluído, não seria apenas, um fator político e econômico, mas também de importância social, pois ligou espaços, gentes, culturas, costumes etc…Antes mesmo que a obra de interligação, iniciassem, por volta de 1.859, tive a honra de transportar, o Imperador do Brasil, D. Pedro II, sua família e grande comitiva, para conhecerem a cachoeira de “Paulo Afonso” que os deixaram maravilhados. Quando veio a República, surgiram as obras, que considero um “retoque” a minha aparência. Meu entorno foi povoado por muitos trabalhadores, prefeitos, engenheiros, máquinas, que tudo faziam, eu, acompanhava de perto, ganhei com essas obras, novos aparatos, como : novas barragens, represas, eclusas, hidroelétricas, mais cidades surgiram junto as minhas margens , etc.. . No inicio do século XX, recebi oficialmente, a medalha que me conferia a honra e o símbolo da “Unidade Nacional”, tal conceito está expresso nos mapas geográficos e nos livros didáticos do período e dos atuais.
TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO (2007)
O significado da palavra, é, desvio, de alguns braços do rio, por canais artificiais, que terão por objetivo levar parte de minhas águas até as áreas mais castigadas pela seca onde a água não chega e a dessedentação só é possível através de açudes, barrentos e lodosos.
Para “ mim” (rio São Francisco) , a transposição trata-se de uma intervenção cirúrgica delicada, a qual confesso que tive um certo medo. Porém fiquei mais aliviado quando os cientistas e engenheiros, me disseram: “ Pelos cálculos hidrológicos realizados antecipadamente “ eu “não sofreria e ainda, se comprometeram a manter intacta e preservada a natureza do meu entorno.
Como qualquer outro paciente, perguntei como seria a intervenção e me explicaram: A obra será faraônica, primeiro construiremos dois canais artificiais (pontes de safena) e o bombardeamento, será de apenas, de 63 metros cúbicos de água por segundo, de sobradinho, para os canais; mesmo assim, isso só ocorrerá quando a represa apresentar com seu nível superior a 94% de sua capacidade. Os dois canais, denominados “Eixo Norte e Eixo Leste”, levarão água para parte dos estados: CE, RN, PB, PE e SE. Pude perceber que não seria um grande desastre e que ainda seria útil e moderno, para gerar novos empregos, estender meu abastecimento de água para áreas desprovidas da mesma, diminuiria a massa dos “refugiados da seca” e outras utilidades. Resolvi então aceitar a proposta. Mas, o pior ainda estava por vir.
O VELHO CHICO – A “priori” um nome carinhoso, o qual aceitei com muito agrado. Posteriormente entendi que o “nome” velho, ao pé da letra e no sentido “pejorativo”, é como me sinto hoje. É bom explicar: Existe dois tipos de idade : a cronológica e aquela que se refere a seu modo de sentir .Todos nós, somos vulneráveis e limitados, a sentir pressões e agressões advindas do exterior, que não respeitam nossa natureza. E, é isso que quero dizer, tornei-me velho no sentimento. Não estou exagerando . Talvez vocês não se deem conta o que vem acontecendo comigo nos últimos tempos, por isso, vou lhes alertar: Já perdi grande parte da minha marta ciliar, que sempre me protegeu. Jogam em minha “cara”, continuamente, “lixo” dos mais variados tipos, sem nenhum pudor. Esgotos clandestinos e não tratados despejam diariamente excrementos humanos, nocivos a minha saúde. Já me encontro assoreado e grandes bancos de areia e resíduos já ultrapassam meu leito. Agrotóxicos, fertilizantes químicos e outros venenos, não param de jorrar em meu canal, exterminando lentamente toda espécie viva, que anteriormente era exuberante, e representavam alimento farto.
Atualmente sinto-me humilhado, imundo, fétido, envenenado, e o pior abandonado. Não quero morrer, por isso lhes peço ajuda. Salvem-me. Salvem o São Francisco, pois ainda existe tempo!
PROFESSOR MARCOS A. MORAES